6 de julho de 2013

KARMA, o mentalista

Luís Farinha


O espectáculo teve lugar no antigo e já extinto Teatro Monumental, no Saldanha, em Lisboa. Um evento que – se a memória não me atraiçoa – foi organizado pelo pessoal da TAP. Vão quase 50 anos. Entre os vários artistas convidados lembro-me da Maria Armanda, ainda na fase pré-fadista e do Palhaço Raulito. Fui contratado para a apresentação.

Ocorreu-me essa lembrança quando li há pouco, no livro Lisboa, anos 60, de Joana Stichini Vilela e Nick Mirozowki, uma referência a um feito levado a cabo pelo mentalista Raul Karma, no ano distante de 1964. Num fim de tarde, em Setembro, perante a incredulidade de ‘meia Lisboa’ Karma conduziu um automóvel – de olhos vendados e com um saco de pano espesso enfiado na cabeça, desde a Praça Duque de Saldanha à Praça do Areeiro, ‘num total de 2.250 metros’.

Eu assisti. Embora afastado, acompanhei parte do percurso e posso assegurar que o êxito não podia ter sido maior!

Passado tanto tempo, a leitura desta ousada demonstração trouxe-me de volta o tal espectáculo do Monumental igualmente ocorrido na década de 60 do século passado. Lembrei-me do Palhaço Raulito, da rábula do pato que ele trazia sobraçado e que era capaz de somar como qualquer bom aluno desse tempo, perito na tabuada. O tempo não perdoa e já não tenho presente o nome que ele dava ao pato quando lhe perguntava: “Toma atenção: quanto soma dois mais dois?”, e o pato grasnava: “Quá, quá, quá, quá”! Essa ou outra adição ou subtracção que o artista lhe propunha. Finalizada a cena do pato, o palhaço foi buscar um longo serrote de cortar madeira, um arco de violino e, manipulando-os com mestria, encheu o salão de música celestial. 
Já no fim da sua actuação, quando nos bastidores lhe perguntei como é que ele conseguira aquele prodígio do pato, respondeu-me: “Olha lá, se te apertassem os tomates tu ficavas calado?”

Pois é… como já perceberam, o Palhaço Raulito, vestido e pintado a preceito e o Professor Karma, era uma e a mesma pessoa. Só que o Karma começou a ser conhecido algum tempo depois de o palhaço ter terminado a sua carreira.

Conhecemo-nos na adolescência, tinha eu 15 anitos e ele 17. Tornámo-nos amigos e colegas de trabalho nos CTT, corria o ano de 1944. Era uma amizade estreita, nunca posta em causa e assim continuámos pelos anos adiante. Sem cerimónia entrava na sua casa, na Travessa das Mónicas, na Graça, o bairro lisboeta onde ambos vivíamos, sendo sempre recebido com afecto pelos seus pais: a D. Maria do Carmo e o senhor Raul Januário, guarda-fiscal, homem de respeito. Vindos da Nazaré, de onde o Raul Júnior era natural, fixaram-se no velho bairro.

Contrariados mas complacentes, os seus progenitores não viam com simpatia mas aceitavam o que, de resto, era inevitável: a recusa do filho para seguir uma carreira profissional dita normal. A sua vocação apontava decididamente para o mundo do espectáculo e, particularmente, para a arte circense. Seria, de resto, essa opção irremediável que acabaria por nos afastar. Lembro-me de, numa última tentativa para o persuadir a retroceder na decisão tomada, o ir visitar a um circo montado num terreno devoluto, à Rua Damasceno Monteiro, mas a sua decisão estava tomada e era irredutível: o circo era a sua vida, garantiu-me. Foi depois disso que o afastamento mútuo se foi ampliando, não por decisão tomada por quaisquer das partes mas devido à itinerância da sua actividade. Para trás deixou ainda uma outra vocação que só os mais próximos, como eu, tiveram oportunidade de lhe reconhecer: a música. O Raul era um músico excelente.

Reencontrei-o, muito anos depois, no restaurante Chicote, no Areeiro, onde actuava, já na pele do Professor Karma. Amigos como sempre, constatei, mas afastados pelas circunstâncias que acompanham o processo de crescimento da gente nova, independente. Infelizmente, Raul Januário Júnior, o Palhaço Raulito ou, se preferirem, Raul Karma – o mentalista, deixou este mundo em 2001. Contava 74 anos, deixando viúva a sua companheira de sempre, Cidália Moreira, a fadista cigana, restando-me a lembrança de tempos que de vez em quando ainda me trazem de volta alguns episódios inapagáveis. Como o que hoje vos trouxe e aqui deixo, num singelo acto de partilha.            

7 comentários:

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  2. Conheci o Prof. Raul Karma talvez em 1965/66, na cidade do Porto, andava ele com a ´sua partener a Béti, dando espetáculos de mentalismo no circo Mariano. O que me fascinava era a rapidez com que desenrolavam os actos de "adivinhação", quero eu dizer rapidez na pergunta e imediata resposta dada pela Béti, conhecendo eu o método que aprendi lendo as obras do Dr. Saturnino Martins Oliveira, um jornalista do Porto. Karma bebeu muito do que sabia em Martins Oliveira, seu amigo .Vários anos mais tarde, talvez em 1982/83, sendo eu colega de trabalho do marido da filha da Béti, Ana Maria, tive a oportunidade de passar dois dias com o Prof. Karma, nessa altura já vivendo com a Cidália Moreira, num espectáculo de fados junto à cidade de Aveiro, se não erro, no pavilhão em Vagos. Nesses dois dias, conversamos muito e recordo-me das suas estórias fascinantes que contava da sua passagem por África. A cena da condução do carro com os olhos vendados era de um efeito espetacular, embora muito fácil de fazer e o seu segredo consistia numa venda em tecido negro da autoria do Dr. Martins Oliveira. Boas recordações!

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  4. Caro Luís Farinha,

    Agradeço desde já a disponibilidade.
    Será que tinha disponibilidade para conversarmos um pouco sobre o prof. Karma?
    Obrigado!
    Melhores cumprimentos,

    Leandro Morgado.

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  5. Obrigado pela partilha! Ainda hoje relembro algumas historias que me contavam do Prof. Karma e que reconto a quem conheço. Fiquei também a conhecer com este seu relato parte da sua vida que nao tinha conhecimento,

    Cumprimentos,
    Egas Moniz

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